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Crônica anacrônica publicada neste blog em 2005 na sessão Anacrônicas. Charge de Chico Borges.
Segunda-feira, 7 horas da manhã de um dia qualquer
de junho de 2001. Estávamos no lugar
combinado, um barracão de estrutura de madeira e telhado velho. Era o primeiro
dia de trabalho. Impossível não sentir aquele frio na barriga típico de estréia
de teatro amador. O que nos esperava? Como seria o trabalho? Quem trabalharia
conosco? Estas eram algumas perguntas que fazíamos antes e que estavam prestes
a serem respondidas.
De repente começaram a chegar outras pessoas que
aparentemente não eram dinamarqueses, e todos nos reunimos em torno do Sr.
Henning. Ele falava em um inglês meio atabalhoado e se dirigia principalmente a
um rapaz loiro, alto, mais ou menos de minha faixa etária que logo recebi o
comentário de Juan: “Él es polaco”. Esse era nosso líder.
Praticamente seguimos o fluxo dos outros e fomos
para outro barracão onde cada pessoa pegou seu macacão verde e botas negras
tipo sete léguas. Demoramos mais que os demais para encontrar o tamanho ideal
das botas e a falta de prática para colocar o macacão nos deixou para trás. Os
outros já tinham ido e apenas nosso líder polonês nos esperava com expressão de
sorriso amarelado e de complacência com os novatos
Finalmente terminamos e seguimos apressadamente o
chefe que em seguida deu um par de luvas para cada um e disse “gloves, gloves.
Let’s go!”, “luvas, luvas, vamos nessa”.
Chegamos a um trator onde havia pranchas estofadas
com napa e parte das pessoas que estavam reunidas conosco anteriormente no
barracão, estavam sentadas sobre elas, apenas esperando os novatos atrasados. O
polonês tomou seu posto de motorista e percorremos um bom tempo por entre
cultivos que não sabia exatamente o que eram. O trator pulava e ninguém sequer
comentava uma única palavra. Quebrei o silêncio perguntando para Juan: “Que
será que vamos fazer em cima destas tábuas?”. Falei em português sem me dar
conta. Estava aéreo com a situação e um pouco confuso. Juan me sorriu com uma
expressão de dúvida sem dizer nenhuma palavra.
A resposta veio em instantes. O trator parou em uma
rua da lavoura, e todos se deitaram de barriga para baixo nas tais pranchas e
colocaram o rosto por entre uma fresta que havia em uma das extremidades. Fiz o
mesmo e percebi que eles colocaram as luvas. Repeti a ação. O trator começou a
andar e não sabia o que fazer. Olhei do lado e os outros tiravam algo. Comecei
a arrancar freneticamente tudo o que via quando o indivíduo que estava ao meu
lado começou a gritar: “Stop, stop, stop...”
O trator imediatamente parou e o líder polaco se
dirigiu ao meu vizinho de prancha e começou a falar em uma língua do tipo
“sheve shev hac haec”. Sem entender
exatamente o que se passava, o polaco desta vez se voltou a mim e disse em gestos o que me parecia o que teria que fazer.
Continuei sem entender. Como um gesto explica melhor que mil palavras, vi que o
vizinho, também polaco, tentava me mostrar algo com as mãos, simulando o modo
correto. Foi aí que percebi o que era o meu trabalho na Dinamarca. Ele tirava os
espinhos e ervas daninha entre a plantação de algo que havia sido semeado há
poucos dias.
Como era uma fazenda ecológica o trabalho consistia
em tirar manualmente as impurezas do plantio, já que não havia utilização de
inseticidas nem nada de químicos. O cultivo era de alho-poró, mas havia
plantação de brócolis, cenoura e trigo. Éramos a mão-de-obra barata de férias
que vinha para suprir a falta de dinamarqueses para este tipo de trabalho.
Consegui, enfim, descobrir o que tinha que fazer.
Apesar de mais uma vez atrasar todo grupo, agora o trator andava
livremente por entre as ruas de alho-poró. Tínhamos um descanso de segundos,
nas manobras do líder polaco quando se terminava um caminho, e se recomeçava o
outro ao lado, um oito sem finito.
Ali, olhando para baixo e fazendo os movimentos
repetitivos de tirar coisas ruins da plantação, minha fronte se acelerava cada
vez mais e os pensamentos brotavam como as sementes de alho-poró. Tentava
entender o que os polacos falavam entre eles. Os xingava com nosso arsenal de palavras grotescas, e eles nem se importavam. Sensação boa, desafiar um homem e ele ficar quieto. O motorista-chefe, com seu “status quo” e alta classificação hierárquica, ria e contava piadas aos demais
compatriotas, enquanto isso todos seguiam de cabeça pra baixo e fazendo de
conta que tudo era normal.
O trator seguia por entre as ruas de alho-poró e já
havia perdido a noção de quantas horas já estava naquela posição e executando
os mesmos movimentos. O corpo já estava adormecido e não mais sentia minhas
mãos. Tinha que falar com alguém.
“Juan, não haverá um intervalo para o descanso? Ou vamos
até ao almoço diretamente?”. Sem deixar-lhe responder, concluí: “Acho que
teremos um longo intervalo, depois vamos descansar como homens de uma
verdadeira democracia... Você não acha que merecemos uma sesta bem longa como “los cabrones
españoles?”.
“Flavio, estou vivendo um sonho! O que nós estamos
fazendo aqui!”. Respondeu Juan já acrescentando a pergunta chave naquilo tudo:
“A gente não veio para trabalhar empacotando cenoura?”
Enquanto o trator seguia sua rota em círculos até
lugar nenhum, um estalo me fez pensar em um paradoxo que me começou a martelar
o intelecto, e se juntava a pergunta de Juan que ainda continuava gravada.
Estaria eu em um dos países mais desenvolvidos do
mundo. Um país nórdico de tradição secular em organização e respeito aos
direitos humanos. Era assim que havíamos aprendido na escola, nas envolventes aulas
de geografia em que o professor nos citava os exemplos de tal civilização
avançada. Então por que nos mentiram? Será que nos haviam fisgado dizendo que
seria um trabalho simples e depois nos tratariam como escravos em trabalho
pesado?
Na verdade estava me sentindo um criado diante da
humilhação de ficar de cabeça para baixo sob as ordens de um líder comunista.
Onde estaria afinal? Seria aquilo um sonho como disse Juan? Onde estaria a
consideração dos escandinavos instruídos aos trabalhadores estrangeiros?
Resolvi então, imaginar passagens boas da minha
vida. Minha infância começou a borbulhar em lembranças de quando eu morava em
Buritama, na Gleba 10 (cidade do interior de São Paulo). Com dez anos de idade,
residia no número 51 de uma das casas pré-fabricadas destinadas aos barrageiros
da Usina Hidroelétrica de Nova Avanhandava. Nas proximidades havia a lagoa e o
campo de futebol municipal.
Lembrei no dia em que eu e meu amigo Esquerdinha
fomos fazer o famoso peneirão para formar o time infantil da cidade. O campo
era grande e rodeado de eucaliptos. O gol era três vezes maior que a garagem
das glebas que usávamos como traves.
Dividiram em quatro campos menores e a trave grande
não foi usada. Em seguida colocaram traves menores que ficaram proporcionais às
que já estávamos acostumados. Um alívio.
Um homem alto de cavanhaque com um monte de camisas
na mão chamou todos para o centro do campo e começou a perguntar qual a posição
de cada e dependendo da resposta dava uma cor de camisa. Esquerdinha e eu
estávamos apreensivos. Éramos os dois mirrados, magros que apareciam os ossos
quando sem camisa. Compartíamos o mesmo sonho de todos moleques daquele
peneirão.
O treinador começou a se aproximar de nós e nossos
olhares e ouvidos se dirigiam às palavras do homem que decidiria nosso momento
de glória ou de fracasso.
“Garoto, que posição você joga?”. Perguntou para
Esquerdinha em tom autoritário. “Em qualquer posição”, respondeu ele.
“Então joga no banco,” completou o treinador duro e
conclusivo numa clássica tirada de futebolês. Com certeza ele não teve a menor
ideia do que fez para o rumo da vida do Esquerdinha.
Meu coração acelerou. Era a minha vez.
“Você, de pernas tortas como o Garrincha, que
posição você joga?”.
“Sou meia-direita professor”. Respondi sem titubear.
“O Garrincha era ponta-direita”, concluí. Ele me deu um sorriso aprovador e me
deu uma camisa. Uma emoção forte me tocou. As pernas tortas afrouxaram e
pensei: “Passei no primeiro teste”.
De volta a Dinamarca e extasiado diante da
prazerosa recordação, fomos interrompidos com a chegada de Henning, o senhor
feudal. Sua expressão era de alegria e excitação. Convidava-nos a parar o
trabalho e ir para algum lugar que não entendemos onde seria, mas que parecia
realmente muito importante. Estava tendo alucinações, pensei.
No caminho Juan perguntou para um polaco para onde
estaríamos indo. Constatou que ele não falava inglês, percebendo a dificuldade
de comunicação o líder-motorista e comunista se aproximou dizendo:
“The queen of Denmark. The queen is here…”. “A rainha da Dinamarca
está aqui”.
Descobrimos. A ilha de Æro havia acariciado à sua rainha uma casa de campo nas proximidades
da fazenda da família Henning. A rainha Margarida II da Dinamarca em pessoa
estava por ali para receber o presente e dar início oficialmente às reformas,
já que a residência havia ficado por anos sem uso.
Logo no primeiro dia de trabalho estava prestes a
estar perto do que seria a mais ilustre
e nobre pessoa que jamais conhecera em minha vida. Também seria a mais célebre
personagem do país da atualidade. Um misto de alegria e sensação de privilégio
único para um brasileiro do interior dos interiores me tocou. Eu, um humilde
plebeu, estaria diante de alguém da realeza de sangue azul, além do mais, de uma
cultura centenária.
Depois de uma caminhada dificultada pelas botas e
macacão, chegamos ao local do encontro.
O policiamento com motos Gold Wind e capacetes que tinham comunicação via rádio me chamou a
atenção logo de entrada. Como as roupas nos identificavam claramente como “farm workers”, trabalhadores rurais,
pensei que seríamos vistos com olhares diferentes.
Enganei-me, nunca havia me sentido tão à vontade
quanto naquele lugar. Mesmo as pessoas vendo nitidamente que nos tratávamos de
estrangeiros e trabalhadores rurais, nos viam sobre outro prisma. É o que senti
naquele momento. Provavelmente nos enxergavam como estudantes que vieram
conhecer seu país, cultura e que jamais roubariam um emprego de qualquer
dinamarquês. Também com aquela língua, quem iria aprender e depois vir a
concorrer com um local?
Os policiais a postos, a plateia ansiosa com a
chegada da sua majestade e, de repente, surge um conversível no fim da linha
que separava os populares, que não se contiveram e começaram a aplaudir. O
carro parou, de chapéu florido e roupa leve de verão com tom pastel, a soberana
e sua altivez comum aos grandes nobres, pousou seus pés na serena e pequena
ilha de Æro. Aquele momento era
marcante para a população local que se sentia orgulhosa de receber a Rainha
Margarida II vivinha ali. O presente da casa talvez fosse um intento de
trazê-la à ilha. E assim o conseguiram; lá estava ela em carne e osso. E eu, um
agraciado por estar ali naquele instante. Desfrutava cada segundo.
Meus olhos brilhavam diante do entorno em que
estava. Dinamarqueses reverenciando sua alteza e um brasileiro ali, no meio da
multidão, também se curvando perante a nobreza da grande rainha.
Seu semblante majestoso parecia reluzir algo que
não conseguia decifrar, apenas sabia que o que via era agradável aos olhos. Uma
mulher em que cada gesto ou sorriso era suave e delicado como o movimento dos
campos de trigo pelo vento que havia visto no na chegada pela janela do ônibus.
Quão adorável figura estava diante de mim. As pessoas se entreolhavam e
comentavam, eu apenas observava.
Imaginava quanta cultura concentrava essa magnífica
pessoa. Sua formação musical, línguas, viagens pelo mundo e conhecimento de
pessoas importantes como filósofos e líderes. Talvez ela tivesse ido já para o
Brasil e conhecido nossa cultura rica e adversa. Como sempre haveria se
encantado com o samba, carnaval, Rio de Janeiro... A São Paulo cosmopolita e
desigual ou a Bahia popular e de cultura densa.
Quizá Jorge Amado a tenha recebido em Salvador.
Teria orgulho se isso acontecesse. Sua originalidade me inspira e me remete à
um poço de orgulho de ser brasileiro. Me comovi especialmente em Tieta do Agreste, a Pastora de Cabras ou a
Volta da Filha Pródiga. Já estava na Espanha quando o li, pesado e com
muitas páginas, tive dúvidas para colocar na mala na viagem do Brasil. Tive
sorte.
Nas tardes de frio no apartamento apertado em
Segóvia, na Espanha, lia por horas e horas o romance, sempre com paradas para
uma mirada pela janela, transportando-se para o Mangue Seco e mergulhando na
fartura de detalhes de cada personagem que me impressionava a cada página. Todos
pareciam ter o papel principal da estória onde Carmozina, Osnar, Perpétua,
Cardo, além da própria Tieta, a pastora de cabras, se entrelaçavam em intrigas com
o característico humor sensual do baiano.
Certa vez, compenetrado na leitura e me sentindo
parte de Santana do Agreste, lembro perfeitamente de ter me emocionado no metrô
em Madri, indo para a faculdade. Em suas minuciosas descrições de gestos e
comportamentos humanos, me senti por um instante parte da estória do notável
Amado. Senti-me mais brasileiro que nunca e com os olhos cheios de lágrimas tentava
me esconder dos outros passageiros. O que não era muito difícil, pois a maioria
das pessoas também estavam seus jornais, revistas e livros...
De volta à realidade, tive a sensação de fazer
parte da história da ilha de Æro, da
cidade de Søby e do reinado da
soberana Margarida II.
Voltamos diretamente para o almoço. Pela entendemos
o que aconteceria nos próximos 3 meses, com 12 horas de trabalho diário com 30
min de descanso de almoço. Também outra informação interessante. O nórdico país
tem seu sistema tributário com 50% de imposto fixo em tudo, ou seja, nossas 12
horas de trabalho eram a remuneração esperada de 6 horas.
Os 3 meses foram intensos e inesquecíveis, aprendi
mais de mim e encontrei um lugar de energia em meu ser, que jamais havia
experimentado antes.